Como combater a desinformação? Não há receita, mas iniciativas inspiradoras!
O ano de 2022 foi intenso na área de comunicação e política. Novembro começou com a vitória de Lula e encerra com o YouTube desmonetizando um dos principais canais definido como jornalístico da plataforma por motivo de desinformação.
Em setembro de 2022, a comunidade científica[1] se mobilizou para estudar como a desinformação estava sendo distribuída nas redes sociais e revelou que o algoritmo do YouTube (YT) privilegiou o programa Pingo nos Is da Jovem Pan (JP), mídia hiperpartidária de extrema direita, nas eleições nacionais. Em novembro, o YT informou que desmonetizaria o canal. Esta ação confirma o quanto é importante para a democracia e para a sociedade os estudos e pesquisas realizados na área de Comunicação e Democracia Digital.
O YT é uma plataforma com diversas possibilidades de utilização. Disponibiliza vídeos que tratam de temas diversificados, mas não pode ser definida como apenas um repositório desses conteúdos. É uma rede social em si, mas vai além, funcionando como conexão entre as diversas redes. Além de ser um site que hospeda vídeos, também permite compartilhá-los em outras redes sociais para serem repercutidos. Em 2020, a plataforma tinha mais de 2 bilhões de espectadores mensais, com aproximadamente um bilhão de horas de vídeos consumidos por dia (cf. KLEINA; SAMPAIO, 2020).
Prever como o YT se comporta é um dos desafios, tanto para os produtores de conteúdo quanto para os pesquisadores, pois os algoritmos estão em constante mudança. Uma das inovações que analisa a dimensão política da plataforma, de acordo com Santos (2022), é o projeto AlgoTransparency[2], usado durante o período eleitoral de 2018, revelou que o volume de vídeos com o termo Bolsonaro em recomendações é quase duas vezes maior do que Lula e cinco vezes maior do que Haddad, embora a busca inicial se dê em paridade de condições.
Outros fatores importantes, que também podem diferenciar o YT das outras redes sociais, se referem ao tempo que os vídeos ficam disponíveis, como são procurados e visualizados. Moritz Meyer constata uma “disrupção dos hábitos de visualização” na busca de conteúdos (MEYER, 2007). A atenção dos espectadores é a moeda única do YT, o que determina a forma como o conteúdo é postado. De acordo com Santos (2022), são postados aproximadamente 500 horas de conteúdo novo por minuto, vários deles denominados com gêneros diferentes do que propõe, gerando “pontos cegos”.
“[…] nenhum dos 10 vídeos sobre “marxismo cultural” mais visualizados no YouTube (dez. 2019) é categorizado como News & Politics (sendo este um tema extremamente relevante para nova direita brasileira e internacional). Vídeos de canais religiosos que se definem como “educativos” e YouTubers de direita são definidos como “entretenimento” e dominam o topo da lista”. (SANTOS, 2022, p. 4)
Um dos grandes problemas do YT é a desinformação, que pode ser direcionada e tem até gerado teorias conspiratórias. Nesse quadro, alguns programas ganharam destaque e audiência, como o “Pingos nos Is”, veiculado pela Rádio JP, que ganhou versão televisual no YT, em maio de 2015, contando com mais de 5,4 milhões de inscritos. Segundo matéria divulgada pela Revista Isto É Dinheiro[3], em setembro de 2019, a JP investiu R$30 milhões em novos estúdios, para, como diz o título da matéria, transformar a Rádio em TV. Em outubro de 2019, a JP lançou o Pan Flix, que gera conteúdo no YT, além de estar disponível em forma de aplicativo para smartphones e smart tvs. Pode-se supor que esse investimento tem como razão as transformações no mercado global de notícias.
O Presidente do Grupo JP, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, afirma que a notícia é uma commodity e deve ser vendida como tal: “Hoje, todo mundo dá opinião, mas há cinco anos, quando começamos, ninguém fazia isso”. Para Lycarião, Magalhães e Albuquerque (2018) existe uma tendência global de crescente perda de centralidade do padrão catch-all de jornalismo devido a fenômenos da comunicação política que vêm transformando o mercado da informação, oferendo consumo personalizado de mídia. O CEO da JP, Roberto Alves de Araújo, concorda: “Ninguém compartilha um vídeo de hard news, mas compartilha uma opinião. Nossos vídeos opinativos dão 80% a mais de engajamento.”
Quanto aos algoritmos, é preciso compreender como funciona o Google AdSense e os critérios para elencar um conteúdo. No YT, existem critérios para que os vídeos sejam expostos para o público. As estratégias de adaptação para que vídeos obtenham vantagens sobre os outros é chamada de SEO (Search Engine Optimization). Para que o canal tenha remuneração é preciso cumprir algumas exigências, como por exemplo: 4 mil horas de vídeos públicos assistidos por usuários da plataforma, ter ao menos mil inscritos no canal e ter sido validado como AdSense Partner. A remuneração também é por meio do AdSense. De acordo com Santos (2022), este é um ponto chave para reconhecer a relação entre os algoritmos da plataforma e o engajamento. É por meio destas estratégias de SEO que os grupos instrumentalizam critérios de algoritmos, o que seria diferente de considerar o número de visualizações ao algoritmo da plataforma.
Conforme Frederico e d’Andréa (2020), as ações do YT sobre as políticas, diretrizes e também nos termos de serviço da plataforma, podem indicar uma maior preocupação com a credibilidade e confiabilidade do conteúdo que circula na plataforma. Porém, estimula a checagem da veracidade de fatos tanto pelos criadores de conteúdo quanto pela parceria da plataforma com checadores independentes, que demonstra uma postura ativa de moderação de conteúdo, porém evitando problemas legais.
Neste sentido, o YT tem se mostrado como uma plataforma que pode ser facilmente, e frequentemente, utilizada como meio de divulgação e propagação de desinformação. O controle destes discursos se mostra cada vez mais difícil e a própria plataforma parece ter dificuldades para monitorar e retirar o conteúdo enganoso – ou simplesmente não tem interesse em fazê-lo. Por esta razão, é relevante que a academia se preocupe com esse importante objeto de estudo para a comunicação política.
O compromisso com a veracidade e com a democracia
Considerando a importância da informação para a formação de uma consciência cidadã na sociedade democrática, cabe reforçar a tese de que não basta a difusão de informações para esse objetivo. É preciso que essas informações sejam minimamente confiáveis, isto é, que sejam baseadas em fatos, checadas e apuradas. Desse modo, o cidadão pode conhecer e entender melhor a realidade, embasando a sua compreensão sobre esta. É necessário levar em conta a opinião pessoal, que tem compromissos com o contexto social, integra o processo de construção da identidade social e compõe a opinião pública (BARRIGA, 2009).
A atenção aos fatos para a formação da opinião é, desde o final do século 19, a premissa básica da relação de dependência entre a democracia e o jornalismo. Desde então, as características e os valores atribuídos à prática jornalística, na sua função de serviço de utilidade pública, são os mesmos: o compromisso com a verdade, objetividade e a independência. O veículo jornalístico que não leva em consideração esses valores, e sempre existiram os que agem assim, é tachado de “amarelo”, nos EUA, ou “marrom”, no Brasil. Trata-se do jornalismo que trata a notícia exclusivamente como mercadoria e inclui os jornais e programas sensacionalistas veiculados em diversas mídias, costumeiramente centrando-se apenas na evocação de emoções, que priorizam a atividade opinativa sem investigação dos fatos (SILVA, 2010).
A análise de um veículo jornalístico precisa levar em conta se essa função pública foi e/ou está sendo levada em consideração, se os fatos foram apresentados após apuração, com a contextualização de suas ocorrências e, sempre que possível, fornecendo mais de uma versão para o ocorrido. Isso levou o jornalismo a ser definido como o “quarto poder”, juntando-se aos outros três poderes conhecidos e reconhecidos na democracia, o executivo, o legislativo e o judiciário, e essa definição tem base exatamente na fiscalização que exerce sobre estes. Essa função de fiscal é fundamental, de modo a tornar públicos os acontecimentos relacionados às tomadas de decisões políticas, como foram encaminhadas e de que modo afeta a vida e o interesse do cidadão. (HABERMAS, 2003).
Tendo em conta o exposto, chama a atenção que, nas últimas décadas, acompanhamos o que tem sido tratado de forma geral como a “crise do jornalismo”. As causas, como apontadas aqui, são várias. Além das plataformas que entregam conteúdo sem verificação da veracidade ou da qualificação dos que produzem notícias ou opiniões, há uma inegável perda da credibilidade, por conta de avaliações críticas acerca do cumprimento do compromisso com a verdade, objetividade e a independência. As acusações de tendenciosidade são inúmeras e o questionamento relativo ao não cumprimento da função social do jornalismo certamente pode ser incluído entre os fatores que levaram a essa crise.
Christofoletti (2019), por exemplo, compreende que as explicações possíveis para a crise do jornalismo são complexas e discorda de quem aponta o fator financeiro como determinante. Segundo ele, a crise tem relação com o papel do jornalismo na sociedade e envolve os temas da “credibilidade” e da “confiança”.
Relacionado ao fator “credibilidade”, é preciso considerar a marcante dependência dos patrocinadores que atinge o jornalismo, desde o início da crise, que pode ser localizado temporalmente na década de 1990, nos Estados Unidos, e dez anos mais tarde no Brasil. Isso, falando apenas do jornalismo impresso, ícone do chamado quarto poder, mas o fenômeno não se restringe a esse setor. TVs e rádios viram suas audiências cairem bruscamente, gerando uma crescente perda de recursos. Nesse contexto, observa-se que os patrocinadores ganharam importância crescente em um modelo competitivo no qual o conceito de notícia como mercadoria (commodity) se impõe como padrão e, por sua natureza, obscurece a prática do jornalismo como serviço público, bem como a sua relação de sustentação do debate democrático (MEDINA, 2006).
A dependência do patrocinador resulta no abandono, no mínimo parcial, do compromisso com a cobertura isenta e objetiva do fato, já que o interesse de quem paga tende a se sobrepor a ele. Esse vetor econômico se acentua com a internet e a importância dos acessos, cliques, likes e demais manifestações lucrativas para os interessados, notadamente a “viralização” de conteúdos. Neste caso, sob o ponto de vista do faturamento, as empresas jornalísticas perdem novamente, pois plataformas como o YT permitem a difusão de informações por pessoas físicas que, elas mesmas, podem vender seus programas ditos jornalísticos a patrocinadores que se orientam pelo sucesso da atração, não exatamente pela qualidade das informações divulgadas (CHRISTOFOLETTI, 2019).
O Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI Br[4] – no relatório Internet, Desinformação e Democracia (2020), descreveu como as plataformas lucram com a desinformação e conteúdos duvidosos. De acordo com o documento, se consolidou um modelo de negócio para a distribuição de conteúdos falsos e enganosos que estruturaram a indústria da desinformação.
Apesar da opacidade em relação ao funcionamento dos algoritmos, como aponta Santos (2022), houve avanço. E a reação do YT no final da corrida eleitoral de 2022 às recomendações provenientes das pesquisas da comunidade acadêmica pode ser uma demonstração de combate à desinformação e de respeito à democracia.
Referências
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa / Perseu Abramo ; com colaborações de Laura Caprigliole … [et al.]. – 2. Ed. – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
BARRIGA, Antónia. Opinião, argumentação e persuasão no quadro de uma racionalidade sociológica – O «poder do discurso». Comunicação e Sociedade, Braga, Portugal, v. 16, p. 27–42, 2009. DOI: 10.17231/comsoc.16(2009).1028.
CHRISTOFOLETTI, Rogério. A crise do jornalismo tem solução? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019.
COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Relatório Internet, Desinformação e Democracia. Disponível em: <https://www.cgi.br/publicacao/relatorio-internet-desinformacao-e-democracia/>. Acesso em: 01 dez. 2022.
FREDERICO, Gregório de Almeida; D’ANDRÉA, Carlos Frederico de Brito. Governanças e mediações algorítmicas da plataforma YouTube durante a pandemia de COVID-19. Dispositiva, Belo Horizonte, v. 9, n. 16, p. 6–26, 2020.
HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
KLEINA, Nilton Cesar Monastier; SAMPAIO, Rafael Cardoso. De quem é a culpa? Argumentos e retóricas iniciais de YouTubers bolsonaristas sobre o coronavírus. Dispositiva, Belo Horizonte, v. 9, n. 16, p. 27–49, 2020.
LYCARIÃO, Diógenes; MAGALHÃES, Eleonora; ALBUQUERQUE, Afonso. Noticiário “objetivo” em liquidação: a decadência do padrão “catch-all” na mídia comercial. Famecos, [S. l.], v. 25, n. 2, p. 1–19, 2018.
MEDINA, Cremilda. O lugar do jornalista: no centro das tensões. In: SEABRA, Roberto; SOUSA, Vivaldo (Orgs). Jornalismo político: teoria, história e técnicas. Rio de Janeiro: Record, 2006.
MEYER, Michel. A Retórica. São Paulo: Ática, 2007.
SANTOS, João Guilherme Bastos Dos. Youtube & política no contexto brasileiro (material da disciplina Política Online). Salvador, BA: INCT.DD, 2022.
SILVA, Rodrigo Carvalho. A Transição do Jornalismo–Do Século XIX ao Século XX. 2010.
[1] Tanto a NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como os pesquisadores João Guilherme Bastos do Santos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, e Guilherme Felitti, da Novelo Data, empresa de análise de dados.
[2] https://www.algotransparency.org/
[3] Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/a-radio-que-virou-tv/. Acesso em: 29 nov. 2022.
[4] Disponível em: https://www.cgi.br/publicacao/relatorio-internet-desinformacao-e-democracia/ acesso em 01 dez. 2022