O que não fazer em uma pandemia e as duras consequências de ser insustentável: lições do Brasil
O desmatamento das florestas tropicais, a queima de combustíveis e todo o conjunto de ações humanas degradantes do meio ambiente, há décadas, têm sido apontados como vetores de grandes crises globais, quer seja porque redundam nos efeitos adversos das mudanças climáticas e causam, anualmente, o deslocamento forçado de dezenas de milhares de pessoas; seja pelo efeito desta crise sobre a frequência e intensidade dos conflitos armados ao redor do planeta; quer seja pelos impactos sobre os direitos humanos de grupos sociais; ou, ainda, pelos efeitos socioeconômicos de médio e longo prazo que tais degradações ambientais são capazes de causar. Uma realidade em que, o desmatamento de florestas tropicais e as políticas agressivas de desenvolvimento aplicadas nestas regiões, tem se mostrado um “cenário perfeito” para a emergência de vírus e patógenos que podem causar novas pandemias (Dobson et al., 2020; Lorenz et al., 2021).
Estudos têm mostrado uma interconexão entre a efetividade de agendas ambientais governamentais no controle do desmatamento e queimadas e uma gestão mais eficiente de crises sanitárias resultantes de pandemias. A análise de Dobson et al. (2020), sugere que os custos de investimentos em prevenção e proteção da florestas tropicais são, significativamente, menores do que os custos econômicos necessários para o controle de pandemias.
A (des)governança ambiental brasileira, liderada pelo presidente Jair Bolsonaro, tem sido criticada internacionalmente por sua ineficiência protetora e por suas consequências irreversíveis e transfronteiriças. Dados de 2021 indicam que o Brasil continua na liderança de perda de floresta tropical primária – seja por desmatamento ou queimadas – superando a média dos últimos cinco anos (Weisse & Goldman, 2021).
Fonte: Weisse & Goldman (2021).
Ao mesmo tempo, a gestão governamental da crise sanitária escancara outra face da insustentabilidade e ineficiência desse governo, para além da perda de quase 600 mil vidas, a “contra agenda” ambiental fragiliza territórios indígenas, que têm sofrido com a grilagem e garimpo ilegal, ficando ainda mais vulneráveis ao contágio por Covid-19. Enquanto as autoridades internacionais adotavam as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o chefe do Executivo brasileiro, em direção oposta, adotou um discurso negacionista, minimizando a crise de saúde, incentivando o fim do isolamento social e adotando uma necropolítica ao buscar a famigerada “imunidade de rebanho”.
Neste sentido, a “contra agenda” socioambiental do governo brasileiro e sua forma negacionista de enfrentamento da pandemia de Covid-19 é fonte suficiente para “lições” sobre o que não fazer em uma pandemia. São duras consequências, com graves impactos socioambientais e humanitários, de médio e longo prazo, que este tipo de agenda traz para o Brasil, país que há muito sofre com as mazelas da desigualdade social.
Mostrando todo o caráter insustentável deste governo, durante reunião ministerial em abril de 2020 para resolução da crise de Covid-19, o então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sem qualquer filtro, disse:
Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento [ambiental], e simplificando normas
Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente no governo Bolsonaro
A fala do ministro evidencia, de maneira clara e contundente, o lado mais sombrio da ligação entre negacionismo, anticientificismo e a insustentabilidade da agenda neoliberal defendida por muitos anos por economistas e, recentemente, aplicada em alguns países da América Latina.
A literatura científica (Gao & Yu, 2020; Machado et al., 2020; Rajan et al., 2020; Shaw et al., 2020) aponta caminhos para o que seria uma gestão sustentável da crise, a saber:
- tomada de decisão racional, coordenada, multinível e apoiada em evidências baseadas em pesquisas (principalmente em virologistas e epidemiologistas);
- incluir mulheres, grupos minoritários e especialistas na força tarefa de enfrentamento à crise sanitária;
- ser claro e transparente no processo de tomada de decisão, possibilitando o controle social, responsabilização e accountability;
- reconhecer os efeitos e necessidades multidimensionais da sociedade e consultar de forma mais ampla e interdisciplinar, dentro e fora da saúde, com base em um verdadeiro paradigma multissetorial; entre outros.
Na contramão, o governo brasileiro tratou de executar medidas opostas e, sob a famigerada desculpa de que os interesses econômicos estavam acima de quaisquer possíveis perdas, o governo brasileiro minimizou a pandemia dizendo que se tratava de uma “gripezinha” (Matoso & Gomes, 2020); fez campanha intensa contra o distanciamento social (CNN Brasil, 2020); promoveu aglomerações (Mergulhão & Castro, 2021); atacou governadores e prefeitos que implantaram as medidas de controle da pandemia (Branco, 2021); atrasou e impôs sigilo sobre o processo de compra de vacinas (Niklas, 2021); e gastou algumas dezenas de milhares de reais em um tratamento precoce, comprovadamente ineficaz (Shalders, 2021). Além disso, estabeleceu e operacionalizou um “Gabinete Paralelo”, composto por profissionais de reputação duvidosa e/ou intimamente ligados à indústria farmacêutica, cuja função era (des)orientar o governo federal no processo de tomada de decisão em relação à pandemia (Bertoni, 2021). Fez, ainda, intenso uso de redes sociais e até mesmo os discursos oficiais da presidência para divulgar desinformação acerca das medidas sanitárias de isolamento social, da origem do vírus SARS-CoV-2, formas de tratamento e prevenção à Covid-19, contra o uso de máscaras, entre outras peça de conteúdo enganoso e fake news (Soares, 2021). O que demonstra sua total insustentabilidade, falta de compromisso e aptidão para o gerenciamento de tamanha crise sanitária.
À esquerda: Bolsonaro se atrapalha com máscara durante coletiva de imprensa. Foto: Adriano Machado/Reuters.
À direita: Bolsonaro promove aglomeração em Brasília. Foto: Evaristo SA/AFP.
Temos evidências consistentes de graves omissões em termos dos deveres do Estado de proteção à saúde humana e atos de improbidade, alguns talvez até crimes contra a humanidade, que já têm e terão – ainda – duras consequências econômicas e sociais para o povo brasileiro e para o desenvolvimento futuro deste país. O anticientificismo e negacionismo adotado por este governo, impôs aos brasileiros uma agenda de ampla aceitação dos riscos à saúde ao não adotar as medidas sanitárias sob o véu de “proteção” dos interesses econômicos imediatos do país.
São, portanto, lições a não serem seguidas, uma vez que se trata de uma agenda governamental que, não à toa, tem sido frequentemente chamada de necropolítica, tem claramente colocado os interesses econômicos imediatos e os das grandes corporações em uma posição de muito maior destaque e importância do que a vida da população brasileira. Um conjunto de ações e omissões que, por suas nefastas consequências atuais e futuras, ilustram muito bem os riscos para o desenvolvimento, a paz, a saúde humana que governos neoliberais reacionários e obscurantistas como este do Brasil representam para uma nação e para toda a humanidade.
Texto: Cristiane Sinimbu Sanchez
Diego Emanuel Arruda Sanchez
REFERÊNCIAS
Bertoni, E. (2021, June 7). Ministério paralelo da Saúde: qual o problema de sua existência. Nexo Jornal. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/06/07/Ministério-paralelo-da-Saúde-qual-o-problema-de-sua-existência
Branco, D. C. (2021, May 23). Bolsonaro ataca governadores e prefeitos em discurso a apoiadores após “motociata.” O Dia. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2021/05/6151566-bolsonaro-ataca-governadores-e-prefeitos-em-discurso-a-apoiadores-apos-motociata.html
CNN Brasil. (2020, March 27). Governo lança campanha “Brasil Não Pode Parar” contra medidas de isolamento. CNN Brasil | Política. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-lanca-campanha-brasil-nao-pode-parar-contra-medidas-de-isolamento/
Dobson, A. P., Pimm, S. L., Hannah, L., Kaufman, L., Ahumada, J. A., Ando, A. W., Bernstein, A., Busch, J., Daszak, P., Engelmann, J., Kinnaird, M. F., Li, B. V., Loch-Temzelides, T., Lovejoy, T., Nowak, K., Roehrdanz, P. R., & Vale, M. M. (2020). Ecology and economics for pandemic prevention. Science, 369(6502), 379–381. https://doi.org/10.1126/science.abc3189
Gao, X., & Yu, J. (2020). Public governance mechanism in the prevention and control of the COVID-19: information, decision-making and execution. Journal of Chinese Governance, 5(2), 178–197. https://doi.org/10.1080/23812346.2020.1744922
Lorenz, C., Lage, M. de O., & Chiaravalloti-Neto, F. (2021). Deforestation hotspots, climate crisis, and the perfect scenario for the next epidemic: The Amazon time bomb. Science of The Total Environment, 783, 147090. https://doi.org/10.1016/J.SCITOTENV.2021.147090
Machado, C. C. V., Dourado, D. A., Santos, J. G., & Santos, N. (2020). Ciência Contaminada: Analisando o Contágio de desinformação sobre coronavírus via youtube. Inct.Dd, 51. https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf
Matoso, F., & Gomes, P. H. (2020, November 26). Bolsonaro diz em “live” que não há vídeo ou áudio em que chame Covid de “gripezinha”; veja dois vídeos em que ele usa o termo. G1 | Política. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/26/bolsonaro-afirma-em-live-que-nao-ha-video-ou-audio-em-que-chame-covid-de-gripezinha.ghtml
Mergulhão, A., & Castro, R. (2021, June 5). Bolsonaro participou de pelo menos 84 aglomerações desde o início da pandemia de Covid-19. O Globo | Política. https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-participou-de-pelo-menos-84-aglomeracoes-desde-inicio-da-pandemia-de-covid-19-25048811
Niklas, J. (2021, August 9). Ministério da Saúde põe sob sigilo documentos sobre compra da Covaxin. O Globo | Política. https://oglobo.globo.com/politica/ministerio-da-saude-poe-sob-sigilo-documentos-sobre-compra-da-covaxin-25147553
Rajan, D., Koch, K., Rohrer, K., Bajnoczki, C., Socha, A., Voss, M., Nicod, M., Ridde, V., & Koonin, J. (2020). Governance of the Covid-19 response: a call for more inclusive and transparent decision-making. BMJ Global Health, 5(5), 1–8. https://doi.org/10.1136/bmjgh-2020-002655
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Shaw, R., Kim, Y. kyun, & Hua, J. (2020). Governance, technology and citizen behavior in pandemic: Lessons from COVID-19 in East Asia. Progress in Disaster Science, 6. https://doi.org/10.1016/j.pdisas.2020.100090
Soares, M. (2021, July 25). Radiografia das ‘lives’ e discursos de Bolsonaro mostra escalada de autoritarismo e desinformação . El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-25/radiografia-das-lives-e-discursos-de-bolsonaro-mostra-escalada-de-autoritarismo-e-desinformacao.html
Weisse, M., & Goldman, E. (2021). Primary Rainforest Destruction Increased 12% from 2019 to 2020. https://research.wri.org/gfr/forest-pulse